Contraste legislativo: desarmonia entre reforma trabalhista e nova Lei do aeronauta
GUSTAVO FILIPE BARBOSA
GARCIA
Livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pós-Doutorado
em Direito pela Universidade de Sevilla. Especialista em Direito pela
Universidade de Sevilla. Membro Pesquisador do IBDSCJ. Membro da Academia Brasileira
de Direito do Trabalho, Titular da Cadeira 27. Professor Universitário em
Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito. Advogado. Foi Juiz do Trabalho,
ex-Procurador do Trabalho do Ministério Público da União e ex-Auditor-Fiscal do
Trabalho.
O tema da terceirização sempre
desperta intensos debates, notadamente quanto aos seus limites e efeitos.
Tivemos, recentemente, a aprovação de dois importantes diplomas legais voltados
às relações de trabalho.
A Lei 13.467, de 13 de julho de 2017, versa sobre a reforma trabalhista, ao modificar amplamente a CLT.
Pouco tempo depois, foi sancionada a Lei 13.475, de 28 de agosto de 2017,
que dispõe sobre o exercício da profissão de aeronauta e revoga a anterior Lei 7.183/1984.
Como é possível notar, ambas tratam de matérias voltadas ao Direito do
Trabalho: enquanto a primeira disciplina, de modo genérico, as relações de
trabalho, a segunda regulamenta certa profissão específica. Entretanto, o que
merece ser salientado é o nítido contraste entre as formas de tramitação e a
qualidade legislativa de cada um dessas normas legais.
A Lei que instituiu a reforma trabalhista foi aprovada em poucos meses,
ou seja, de modo extremamente açodado, sem alcançar o consenso perante a
sociedade, acirrando disputas entre instituições e grupos com interesses
divergentes.
Embora o texto original do Projeto de Lei abrangesse apenas cerca de sete
artigos da CLT, a versão aprovada pela Câmara dos Deputados alcançou mais de
uma centena de dispositivos do referido diploma legal trabalhista. O Senado,
por seu turno, abriu mão de fazer quaisquer alterações no texto aprovado pela
Câmara, deixando de exercer as esperadas funções de revisão e de aprimoramento
legislativo. Posteriormente, a Medida Provisória 808, de 14 de novembro de
2017, alterou novamente a CLT.
Sem o necessário aprofundamento do debate, a reforma trabalhista, além de
contrariar diversas orientações consolidadas pela jurisprudência ao longo dos
anos, em linhas gerais, dá preferência à adoção de entendimentos normalmente defendidos
por setores empresariais. Diversas de suas previsões têm gerado intensas
controvérsias, já tendo sido até mesmo ajuizada no Supremo Tribunal Federal ação
direta de inconstitucionalidade quanto a alguns de seus dispositivos em matéria
processual.
De modo bastante diverso, a nova Lei que regula o exercício das
profissões de piloto de aeronave, comissário de voo e mecânico de voo tramitou durante
vários anos no Congresso Nacional, tendo sido objeto de debates e
aperfeiçoamentos ao longo do processo legislativo.
Com disposições bem mais equilibradas, isto é, sem pender para apenas um
dos polos da relação de emprego, trata-se de diploma legal que, embora
reconheça e incentive os instrumentos normativos decorrentes da negociação
coletiva, não deixa de estabelecer a necessária proteção aos direitos dos
trabalhadores envolvidos.
Nesse enfoque, exemplificativamente, a Lei 13.475/2017 dispõe que a
implantação e a atualização do chamado “Sistema de Gerenciamento de Risco de
Fadiga Humana” devem ser acompanhadas pelo
sindicato da categoria profissional (art. 19, § 3º).
Há ainda previsão expressa de que a função remunerada dos tripulantes a
bordo de aeronave deve, obrigatoriamente, ser formalizada por meio de contrato de trabalho firmado diretamente com o operador da aeronave
(art. 20 da Lei 13.475/2017).
Portanto, segundo essa regra especial, não se admite a terceirização pelo
operador da aeronave das atividades relativas à mencionada função dos tripulantes
a bordo de aeronave. Do mesmo modo, não é permitida a contratação dos referidos
empregados de forma intermediada por terceiro ou interposta, como ocorre no
trabalho temporário.
Adotando linha completamente divergente, no âmbito da reforma
trabalhista, a terceirização passa a ser prevista como a transferência feita
pela contratante da execução de quaisquer
de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de
direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica
compatível com a sua execução (art. 4º-A da Lei 6.019/1974, com redação dada
pela Lei 13.467/2017).
Admite-se, assim, a terceirização de
forma ampla, ou seja, de quaisquer das atividades da tomadora, inclusive de sua atividade principal. A
reforma trabalhista, portanto, procurou superar a distinção entre atividade-fim
e atividade-meio, anteriormente adotada pela jurisprudência (Súmula 331, item
III, do TST)[1].
Não obstante, a nova Lei do aeronauta parece retomar essa diferenciação,
ao dispor que o tripulante de voo ou de
cabine só pode exercer função remunerada a bordo de aeronave de um operador
ao qual não esteja diretamente vinculado por contrato de trabalho quando o
serviço aéreo não constituir atividade
fim, e desde que por prazo não superior a 30 dias consecutivos, contado da
data de início da prestação dos serviços. Essa prestação de serviço remunerado
não pode ocorrer por mais de uma vez ao ano e deve ser formalizada por contrato
escrito, sob pena de presunção de vínculo empregatício do tripulante
diretamente com o operador da aeronave.
Logo, observa-se não apenas a menção à atividade fim do tomador do
serviço, mas certa restrição quanto ao tripulante de voo ou de cabine a
respeito do exercício de labor remunerado a bordo de aeronave para outro
operador que não seja o empregador, isto é, com quem não seja mantido
diretamente o contrato de trabalho.
Como se pode notar, enquanto não se admite a terceirização das atividades
exercidas pelos tripulantes de aeronave, os quais devem ser contratados
diretamente pelo empregador (operador da aeronave), para as outras atividades (e
várias delas também exigem conhecimentos técnicos ou específicos), segundo a reforma
trabalhista, a terceirização pode ser adotada praticamente sem limites.
Questiona-se, assim, a justificava para esse tratamento legislativo tão desarmônico
e desigual entre uma função e todas as demais.
Se o piloto de aeronave deve ser contratado diretamente, sem a possibilidade
de terceirização, pode não haver motivo lógico e razoável para não se aplicar a
mesma regra, por exemplo, ao motorista de ônibus e de outros meios de
transporte público, ou mesmo ao médico, ao professor, ao engenheiro, ao
enfermeiro e assim por diante.
Afinal, haveria alguma hierarquia axiológica entre as profissões, ou todo
trabalho deve ser protegido e promovido, como manifestação do valor intrínseco decorrente
da dignidade humana?
Estas são algumas das reflexões que precisam nortear a atual atividade
legislativa, bem como a interpretação e a aplicação das normas jurídicas, as
quais, no Estado Democrático de Direito, devem ter como objetivo fundamental a
concretização do bem comum, superando interesses meramente políticos,
econômicos e circunstanciais.
Conheça o catálogo do autor: https://professorgustavogarcia.blogspot.com/p/obras.html
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[1]
Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Reforma
trabalhista. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2017. p. 367-368.