Reforma trabalhista e alterações na jurisprudência dos Tribunais do Trabalho: constitucionalidade
GUSTAVO FILIPE BARBOSA
GARCIA
Livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pós-Doutorado
em Direito pela Universidade de Sevilla. Especialista em Direito pela
Universidade de Sevilla. Membro Pesquisador do IBDSCJ. Membro da Academia Brasileira
de Direito do Trabalho, Titular da Cadeira 27. Professor Universitário em
Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito. Advogado. Foi Juiz do Trabalho,
ex-Procurador do Trabalho do Ministério Público da União e ex-Auditor-Fiscal do
Trabalho.
A Lei 13.467, de 13 de julho de
2017, com início de vigência em 11 de novembro de 2017 (art. 6º), alterou a
Consolidação das Leis do Trabalho e as Leis 6.019/1974, 8.036/1990 e
8.212/1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho[1].
No presente texto, propõe-se
examinar a constitucionalidade da atual previsão relativa à modificação das
súmulas e outros enunciados de jurisprudência dos Tribunais do Trabalho.
O art. 702, inciso I, alínea f, da CLT, acrescentada pela Lei 13.467/2017,
dispõe que ao Pleno do Tribunal Superior do Trabalho compete estabelecer ou
alterar súmulas e outros enunciados de
jurisprudência uniforme, pelo voto de pelo menos 2/3 de seus membros, caso
a mesma matéria já tenha sido decidida de forma idêntica por unanimidade em, no
mínimo, 2/3 das turmas em pelo menos 10 sessões diferentes em cada uma delas,
podendo, ainda, por maioria de 2/3 de seus membros, restringir os efeitos
daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de sua
publicação no Diário Oficial.
As sessões de julgamento sobre
estabelecimento ou alteração de súmulas e outros enunciados de jurisprudência
devem ser públicas, divulgadas com, no mínimo, 30 dias de antecedência, e devem
possibilitar a sustentação oral pelo Procurador-Geral do Trabalho, pelo
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, pelo Advogado-Geral da União
e por confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional (art.
702, § 3º, da CLT, incluído pela Lei 13.467/2017).
O estabelecimento ou a alteração de
súmulas e outros enunciados de jurisprudência pelos Tribunais Regionais do
Trabalho devem observar o disposto na alínea f do inciso I e no § 3º do art. 702 da CLT, com rol equivalente de
legitimados para sustentação oral, observada a abrangência de sua circunscrição
judiciária (art. 702, § 4º, da CLT, acrescentado pela Lei 13.467/2017).
Argumenta-se,
entretanto, que essas previsões, decorrentes da reforma trabalhista, seriam inconstitucionais, por afrontarem, em
essência, a autonomia dos tribunais (arts. 96, inciso I, e 99 da Constituição
da República), a independência do Poder Judiciário e a separação dos Poderes
(art. 2º da Constituição da República).
É certo que os dispositivos em
estudo estabelecem maior rigor quanto
aos requisitos exigidos para a aprovação e modificação de súmulas e outros
enunciados de jurisprudência trabalhista.
Com isso, no plano da crítica ao Direito legislado,
naturalmente, pode-se não concordar com a nova determinação legal, no sentido
de que não seria a mais adequada em face da atual dinâmica social, econômica e
jurídica.
De todo modo,
segundo o art. 926 do CPC de 2015, os tribunais devem uniformizar sua
jurisprudência, bem como mantê-la estável,
íntegra e coerente.
A estabilidade da jurisprudência,
portanto, é exigida como forma de se respeitar a segurança jurídica, essencial ao Estado Democrático de Direito
(art. 5º, caput, da Constituição
Federal de 1988).
Nesse
contexto, o art. 926, § 2º, do CPC determina que ao editar enunciados de
súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
Vale dizer, há necessidade de precedentes para que, em momento
posterior, possa ocorrer a edição de súmulas, exigência esta que, pelo mesmo
motivo de segurança nas relações jurídicas, revela-se imprescindível também para
a sua modificação.
A uniformização da jurisprudência,
evidentemente, impõe que ocorra a divergência entre julgados, não cabendo ao
tribunal editar súmulas e orientações jurisprudenciais de forma prematura e
açodada, mas apenas após o amplo debate, inclusive perante as instâncias
inferiores, em observância do contraditório, permitindo a consolidação das
teses jurídicas que se mostrarem as mais adequadas.
Frise-se que a jurisprudência
passou a ter conotação obrigatória e força nitidamente vinculante em diversas
situações, como se observa nos arts. 489, § 1º, inciso VI, e 927 do CPC de
2015, o que confirma a sua relevância cada vez maior na atualidade, inclusive
na esfera trabalhista (art. 769 da CLT e art. 15 do CPC de 2015), mas também
impõe maior cautela na formulação dos
seus enunciados.
Logo, a jurisdição, exercida pelos
tribunais, não pode legislar, em respeito ao princípio da separação de poderes.
Nesse sentido, são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário (art. 2º da Constituição Federal de
1988).
Vejamos, ainda assim, os
dispositivos da Constituição Federal de 1988 apontados pela tese que defende a
inconstitucionalidade dos art. 702, inciso I, alínea f, e §§ 3º e 4º da CLT, incluídos pela Lei 13.467/2017.
O art. 92 da Constituição da República
estabelece quais são os órgãos do Poder Judiciário, não tendo qualquer
pertinência com o tema em exame, qual seja: a edição e a modificação de súmulas
e outros enunciados de jurisprudência.
O
art. 96, inciso I, a, da Constituição
Federal de 1988 dispõe que compete privativamente aos tribunais “eleger seus
órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das
normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a
competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e
administrativos”.
Esse dispositivo constitucional,
apesar de reconhecer, como não poderia deixar de ser, que cabe ao próprio
tribunal a aprovação de seu regimento
interno, não trata da questão voltada à construção da jurisprudência, nem
estabelece que os requisitos para a edição e modificação de súmulas e orientações
jurisprudenciais devam ser previstos, exclusivamente, no regimento interno (e
não em lei).
A matéria relativa à competência e ao
funcionamento dos órgãos jurisdicionais e administrativos dos tribunais,
mencionada no art. 96, inciso I, a,
da Constituição Federal de 1988, ao versar sobre os regimentos internos, como é
evidente, em nada se identifica com a aprovação e alteração de súmulas e outros
enunciados de jurisprudência.
Em verdade, o referido preceito
constitucional, ao determinar que compete aos tribunais elaborar os seus
regimentos internos, é expresso no sentido de que devem ser observadas as normas de processo e as garantias processuais das partes.
As “normas de processo” são
previstas em lei, de competência privativa da União, conforme art. 22, inciso
I, da Constituição Federal de 1988, como é o caso dos art. 702, inciso I,
alínea f, e §§ 3º e 4º da CLT, e não
em normas administrativas, regimentais ou internas dos tribunais.
Na mesma linha, as “garantias
processuais das partes” são aquelas decorrentes de normas constitucionais e
legais, em respeito ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal
(art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição da República).
Não cabe aos tribunais, assim, em
afronta ao princípio da separação dos Poderes (art. 2º da Constituição da
República), legislar em matéria processual, seja por meio do regimento interno
ou de outras modalidades de atos administrativos e judiciários, como resoluções
e instruções normativas.
Mesmo porque, no Estado Democrático
de Direito, tendo em vista o princípio da
legalidade, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei (art. 5º,
inciso II, da Constituição da República).
Reconhece-se que, na esfera cível,
o Código de Processo Civil de 2015, com natureza de lei, adotou critério
distinto quanto à edição de enunciados de súmulas correspondentes à
jurisprudência dominante dos tribunais, ao remeter o tema à “forma estabelecida”
e aos “pressupostos fixados no regimento interno” (art. 926, § 1º, do CPC).
No âmbito trabalhista, o rigor para
isso passou a ser maior, conforme a atual previsão legal específica, a qual pode
até não ser a mais oportuna ou adequada, no plano da crítica ao Direito
positivo, mas não necessariamente
inconstitucional.
O art. 99 da Constituição da
República, por sua vez, dispõe que ao “Poder Judiciário é assegurada autonomia
administrativa e financeira”.
A mencionada disposição, apesar de
relevante, não diz respeito à uniformização da jurisprudência, mesmo porque
trata de tema bem diverso, qual seja, a autonomia do Poder Judiciário nos planos administrativo e financeiro.
Em síntese, não há qualquer
preceito constitucional que exclua da lei a competência para estabelecer os
requisitos da uniformização da jurisprudência, nem existe qualquer determinação
constitucional no sentido de que a edição e a modificação de súmulas e outros
enunciados de jurisprudência sejam matérias exclusivas dos regimentos internos.
A correta análise do sistema
jurídico, em verdade, revela justamente o contrário, considerando, inclusive, o
princípio da legalidade.
O mencionado art. 926, § 1º, do CPC
de 2015, como norma legal, na esfera cível, é que faz remissão à forma e aos
pressupostos do regimento interno para os tribunais cumprirem o dever de editar
enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
No processo do trabalho,
entretanto, a norma legal expressa e específica do art. 702, inciso I, alínea f, da CLT determina, diretamente, os
requisitos a serem observados, justamente para evitar a aprovação e a alteração
de súmulas e outros enunciados de jurisprudência sem o prévio e amplo debate,
notadamente sem que a divergência se materialize, primeiramente, perante as
instâncias inferiores da Justiça do Trabalho.
A decisão proferida pelo Supremo
Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.105/DF, por sua vez,
especificamente quanto ao art. 7º, inciso IX, da Lei 8.906/1994, que previa o
direito do advogado de sustentar oralmente as razões de qualquer recurso ou
processo, nas sessões de julgamento, “após o voto do relator”, como parece
claro, não tratou da temática em exame, voltada aos requisitos para a edição ou
modificação de súmulas e outros enunciados de jurisprudência (matéria
processual). Bem diversamente, a decisão da medida
cautelar na referida demanda faz menção a questões relativas à “ordem no
julgamento”, ou seja, ao “funcionamento” e à “economia dos tribunais”, nesses
casos, de competência do regimento interno[2].
Reconhece-se, entretanto, que a tendência
é o Pleno do Tribunal Superior do Trabalho decidir, incidentalmente (art. 97 da
Constituição da República), no sentido da inconstitucionalidade dos art. 702,
inciso I, alínea f, e §§ 3º e 4º da
CLT, incluídos pela Lei 13.467/2017, como já se manifestou a Comissão de
Jurisprudência e de Precedentes Normativos, ao opinar, em parecer datado de 22
de fevereiro de 2018, no processo TST-E-RR-696-25.2012.5.050463, no sentido de
que seja “declarado o afastamento da sua aplicação no processo de criação e
alteração de súmulas e demais enunciados de jurisprudência do TST”.
Ainda
assim, não se pode deixar de salientar que o mesmo Pleno do Tribunal Superior
do Trabalho, por meio da Resolução Administrativa 1.937, de 20 de novembro de
2017, aprovou o novo texto do Regimento Interno do Tribunal Superior do
Trabalho.
Desse
modo, conforme o art. 75, inciso VII, do atual Regimento Interno do TST,
compete ao Tribunal Pleno “estabelecer ou alterar súmulas e outros enunciados
de jurisprudência uniforme, pelo voto de pelo menos 2/3 (dois terços) de seus
membros, caso a mesma matéria já tenha sido decidida de forma idêntica por
unanimidade em, no mínimo, 2/3 (dois terços) das turmas, em pelo menos 10 (dez)
sessões diferentes em cada uma delas, podendo, ainda, por maioria de 2/3 (dois
terços) de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir
que ela só tenha eficácia a partir de sua publicação no Diário Oficial”.
Reitera-se, assim, a mesma previsão
do art. 702, inciso I, alínea f, da
CLT, o que acarretará nítida contradição
na hipótese de o mesmo Tribunal Pleno, poucos meses depois, decidir pela
inconstitucionalidade dessa previsão legal.
Da
mesma forma, o art. 125, § 2º, do atual Regimento Interno do TST, reiterando o
art. 702, § 3º, da CLT, determina que as “sessões de julgamento sobre
estabelecimento ou alteração de súmulas e outros enunciados de jurisprudência
deverão ser públicas, divulgadas com, no mínimo, 30 (trinta) dias úteis de antecedência,
e deverão possibilitar a sustentação oral pelo Procurador-Geral do Trabalho,
pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, pelo Advogado-Geral da
União e por confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional”.
Ademais, ainda que o Pleno do TST
decida pela inconstitucionalidade dos art. 702, inciso I, alínea f, e §§ 3º e 4º da CLT, incluídos pela
Lei 13.467/2017, e passe a seguir apenas as regras do Regimento Interno do TST,
estas, como demonstrado, estabelecem atualmente no mesmo sentido da lei em
vigor.
O disposto no anterior Regimento
Interno, a rigor, não teria como ser aplicado, pois foi revogado pela norma
regimental mais recente e diversa, na forma do art. 364 do atual Regimento
Interno do TST, ao estabelecer a revogação das disposições em contrário.
Ainda que se considerasse que o
art. 702 da CLT teria sido tacitamente revogado pela Lei 7.701/1988, e que não
caberia à Lei 13.467/2017 acrescentar inciso e parágrafos a esse dispositivo,
as previsões contidas nos art. 702, inciso I, alínea f, e §§ 3º e 4º da CLT, apresentam plena compreensão, sentido,
alcance, aplicabilidade e validade. A alegação, nesse aspecto, restringe-se ao
plano da crítica à técnica legislativa,
que não teria sido a mais indicada, mas sem aptidão para invalidar as novas
disposições legais.
Por fim, mesmo que o Pleno do TST,
como parece provável, decida no sentido da inconstitucionalidade dos art. 702,
inciso I, alínea f, e §§ 3º e 4º da
CLT, incluídos pela Lei 13.467/2017, a matéria certamente chegará ao Supremo
Tribunal Federal, que, espera-se, possa corrigir os rumos da questão.
Cabe, assim, acompanhar os
desdobramentos dessa relevante e controvertida matéria, relativa à atividade
jurisdicional e à consolidação da jurisprudência.
Conheça o catálogo do autor: https://professorgustavogarcia.blogspot.com/p/obras.html
Conheça o catálogo do autor: https://professorgustavogarcia.blogspot.com/p/obras.html
[1]
Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Reforma
trabalhista. 3. ed. Salvador, JusPodivm, 2018.
[2] A
ementa da decisão final, na realidade, tem a seguinte redação: “Ação direta de
inconstitucionalidade. Art. 7º, IX, da Lei 8.906, de 4 de julho de 1994.
Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. Sustentação oral pelo
advogado após o voto do relator. Impossibilidade. Ação direta julgada
procedente. I - A sustentação oral pelo advogado, após o voto do Relator,
afronta o devido processo legal, além de poder causar tumulto processual, uma
vez que o contraditório se estabelece entre as partes. II - Ação direta de
inconstitucionalidade julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade
do art. 7º, IX, da Lei 8.906, de 4 de julho de 1994” (STF, Pleno, ADI 1.105/DF,
Rel. p/ Ac. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 04.06.2010).