Direitos metaindividuais não são heterogêneos
GUSTAVO FILIPE BARBOSA GARCIA
Livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pós-Doutorado em Direito pela Universidade de Sevilla. Especialista em Direito pela Universidade de Sevilla. Membro Pesquisador do IBDSCJ. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, Titular da Cadeira 27. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Professor Universitário em Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito. Advogado. Foi Juiz do Trabalho das 2ª, 8ª e 24ª Regiões, ex-Procurador do Trabalho do Ministério Público da União e ex-Auditor-Fiscal do Trabalho.
Os direitos metaindividuais, ou coletivos em sentido amplo, podem ser
entendidos como o gênero, do qual fazem parte os direitos difusos, os coletivos
em sentido estrito e os individuais homogêneos, conforme previsão na Lei
8.078/1990, art. 81, parágrafo único, incisos I, II e III (Código de Defesa do
Consumidor) e na Lei 7.347/1985, arts. 1º, inciso IV, e 21 (Lei da Ação Civil
Pública)[1].
Os mencionados direitos transindividuais
são aptos a serem tutelados, assim, por meio de ação civil pública ou ação
coletiva.
Os direitos difusos são conceituados como “os transindividuais, de
natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas
por circunstância de fato” (art. 81, parágrafo único, inciso I, da Lei
8.078/1990).
No direito difuso, quanto ao aspecto
subjetivo, seus titulares são pessoas indeterminadas; quanto
ao aspecto objetivo, o objeto do direito (bem jurídico) é indivisível[2].
Nessa modalidade de direitos coletivos, um mesmo fato dá origem ao direito
difuso, com as referidas características.
A indivisibilidade do bem jurídico é
facilmente constatada, pois basta uma única ofensa para que todos os titulares
do direito sejam atingidos. Do mesmo modo, a satisfação do direito beneficia a
todos os titulares indeterminados ao mesmo tempo.
No âmbito
trabalhista, pode-se exemplificar com a hipótese de pretensão no sentido de que
o ente público realize concurso público para a admissão de servidores e empregados
públicos, o que envolve interesse de toda a sociedade.
Os direitos coletivos (em sentido estrito), por sua vez, são definidos
como “os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo,
categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por
uma relação jurídica base” (art. 81, parágrafo único, inciso II, da Lei
8.078/1990).
O objeto dos referidos direitos é indivisível (aspecto objetivo)[3],
tendo como titular um agrupamento de pessoas, as quais são determináveis (aspecto subjetivo), pois serão todas
aquelas que constituem o grupo. Por isso se verifica a “relação jurídica base”,
que liga todas as pessoas inseridas no grupo, categoria ou classe[4].
No campo trabalhista, cabe mencionar a
hipótese em que certa empresa utiliza substância insalubre em seu ambiente de
trabalho, o que causa prejuízo à saúde do grupo de empregados que ali presta
serviços.
Os direitos individuais homogêneos, por sua vez, são os “decorrentes
de origem comum” (art. 81, parágrafo único, inciso III, da Lei 8.078/1990).
Deve-se esclarecer que os mencionados
direitos são, em sua essência, individuais[5].
Por consequência, possuem titulares determinados e objeto
divisível. A particularidade está em que muitas pessoas são
detentoras, cada uma delas, de direitos individuais substancialmente iguais
(podendo cada titular ter determinadas particularidades não exatamente
equivalentes perante os demais). Ainda assim, na essência, os direitos são os mesmos,
daí serem “homogêneos”, justificando a possibilidade de serem reunidos para a
tutela por meio da mesma ação coletiva, ganhando, assim, configuração
metaindividual, pois envolvem grupos de pessoas numa mesma situação.
Essa homogeneidade de direitos
decorre da “origem comum”. Como se sabe, a origem dos direitos subjetivos são
os fatos[6].
Assim, direitos homogêneos são aqueles direitos subjetivos que decorrem dos
mesmos fatos.
Efetivamente, há diversas situações
em que, a partir de um mesmo fato lesivo, várias são as pessoas atingidas de
maneira uniforme, homogênea. Por isso, essas pessoas passam a ser titulares,
simultaneamente, de direitos subjetivos substancialmente iguais, homogêneos.
Tendo em vista essa particularidade, o sistema processual prevê a
aplicabilidade dos instrumentos pertinentes à tutela jurisdicional
metaindividual, com o objetivo de defendê-los de maneira mais célere e
eficiente.
Ainda na esfera trabalhista, pode-se
exemplificar com situação em que a existência de substância insalubre no local
de trabalho gera aos empregados da empresa a pretensão de recebimento do
adicional de insalubridade.
Portanto, a mesma situação de fato
pode dar origem a direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos,
conforme a causa de pedir e o pedido que são apresentados na demanda.
Apesar do acima exposto, deve-se
frisar que, quando o caso envolve questões nitidamente individuais, que dependem do exame de cada uma das
hipóteses concretas, com ausência de possíveis questões comuns, ou mesmo
quando as questões particulares prevalecem sobre as comuns, na realidade, não se
observa a presença de direito individual homogêneo.
Nesse enfoque, segundo esclarece
Sergio Pinto Martins: “No reconhecimento de vínculo de emprego em ação civil
pública não há interesse ou direitos individuais homogêneos, pois as circunstâncias
de fato podem não ser as mesmas: cada caso é um caso. [...] Não se pode
declarar na ação civil pública que todos os trabalhadores são empregados ou que
devam ser anotadas as Carteiras de Trabalho de todos trabalhadores, pois os
interesses ou direitos são individuais em relação a cada trabalhador, mas não
são homogêneos. Há necessidade de prova individual para cada trabalhador
envolvido. Os trabalhadores não são individualizados na ação civil pública nem
o Ministério Público do Trabalho sabe quem são eles individualmente. Pode não
existir a mesma situação de fato para cada trabalhador. [...] Nos casos em que
se discute vínculo de emprego, o Ministério Público do Trabalho não tem
legitimidade para propor ação civil pública contra as empresas [...], pois a
questão é individual e não coletiva”[7].
Na jurisprudência, cabe destacar o
seguinte julgado:
“Substituição processual. Declaração
de relação de emprego. Direito individual sem dimensão coletiva. Inadequação do
procedimento do Código de Defesa do Consumidor. Necessidade de identificação
dos substituídos. A declaração da existência do vínculo de emprego pressupõe a
investigação da situação pessoal de cada um dos substituídos, já que para a
efetividade do provimento é imprescindível averiguar o concurso dos requisitos
do artigo 3º da Consolidação. A situação não envolve direito individual
homogêneo, que, além da origem comum, pressupõe a prevalência das questões
comuns sobre as questões individuais de cada substituído. A hipótese é de
direito individual puro ou heterogêneo, que não tem dimensão coletiva porque as
questões individuais prevalecem sobre as questões comuns. Ao contrário do que
ocorre com o direito individual homogêneo, em que a predominância das questões
comuns conduz a situação de uniformidade que permite a emissão de provimento
genérico e torna desnecessária a identificação dos substituídos até o momento
de liquidação da sentença, a efetividade da declaração da existência de vínculo
de emprego exige a prévia identificação dos substituídos, já que a eliminação
da crise de certeza a que se destina o provimento declaratório depende da
cognição de questões individuais de cada um dos trabalhadores. Sem a
identificação dos substituídos, o pedido é indeterminado e, de consequência,
sua apreciação conduziria a provimento desprovido de qualquer utilidade. Apelo
da entidade sindical ao qual se nega provimento para o fim de confirmar a
extinção do processo sem resolução do mérito inadequação da via processual”
(TRT/SP – 2ª Reg., 6ª T., RO, Processo nº 00114-2007-081-02-00-8, Acórdão
nº 20080351217, Rel. Des. Salvador
Franco de Lima Laurino, DOE/SP 02.05.2008).
Como se pode notar, a prevalência de
questões individuais afasta a possibilidade da tutela dos mencionados direitos
de forma metaindividual, inclusive por ser inviável, bem como inadequado e
incorreto, o tratamento de direito exclusivamente individual, ou nitidamente
heterogêneo, de modo coletivo[8].
Obras do autor: https://editoraj.us/gustavogarcia
[1] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito processual do trabalho. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 1026-1029.
[2] Cf. DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação civil pública. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 26.
[3] Cf. DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação civil pública. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 54.
[4] Cf. WATANABE, Kazuo. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 803. “Essa relação jurídica-base é a preexistente à lesão ou ameaça de lesão do interesse ou direito do grupo, categoria ou classe de pessoas. Não a relação jurídica nascida da própria lesão ou da ameaça de lesão”.
[5] Cf. DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação civil pública. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 60: “Eles são verdadeiros interesses individuais, mas circunstancialmente tratados de forma coletiva” (destaques do original).
[6] Cf. LACERDA, Galeno. Comentários ao Código de Processo Civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. v. 8. t. 1. p. 16: “No direito material, a causa donde brota o direito subjetivo, e, portanto, a relação jurídica, é o fato ou o ato jurídico material: o contrato, o ato ilícito, o nascimento, a morte, o testamento etc.”.
[7] MARTINS, Sergio Pinto. Direito processual do trabalho. 34. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 609.
[8] Cf. VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Interesses individuais homogêneos e seus aspectos polêmicos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 21-22 (fazendo referência a GRINOVER, Ada Pellegrini. Da “class action for damages” à ação de classe brasileira: os requisitos de admissibilidade. Revista da Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, n. 20): “Com efeito, sem que se conclua pela prevalência do coletivo sobre o individual, a tutela coletiva de interesses individuais de origem comum não se viabiliza. Torna-se ineficaz. Apresenta-se – acrescentaria – como um sistema processual indevido. Efetivamente, prevalecendo aspectos individuais sobre o coletivo, diante, v.g., do reduzidíssimo número de envolvidos e da especial consequência suportada por cada um, a tutela individual, feita segundo as regras individualistas do Código de Processo Civil, mostrar-se-ia mais eficaz, proporcionando com a dedução de pedidos certos, aptos à satisfação da situação fática reclamada por cada um dos interessados, tutela jurisdicional mais adequada, mais rápida e mesmo mais econômica. [...] Numa palavra, aspectos coletivos devem sobressair em relação a situações individuais para que a tutela coletiva de interesses individuais se justifique”.