Respeito à Constituição em situações de crise: redução de salário na recente decisão do STF
GUSTAVO FILIPE BARBOSA GARCIA
Livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito pela Universidade de Sevilla. Pós-Doutorado em Direito pela Universidade de Sevilla. Professor Universitário em Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito. Membro Pesquisador do IBDSCJ. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, Titular da Cadeira 27. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Advogado.
A Constituição, como
norma fundamental, não deve vigorar e ter efetividade apenas em épocas de bonança
e normalidade, mas também, e especialmente, em períodos de crise, dificuldade e
excepcionalidade.
Apesar da terrível pandemia
decorrente do coronavírus, que assola a humanidade, com graves impactos na
saúde, na economia e na sociedade, as normas constitucionais não podem ser
deixadas em quarentena, nem lançadas em segregação compulsória.
A Constituição não é mero
documento simbólico de intenções, não está morta e não pode ser descumprida, mesmo
mediante argumentações que resultem na defesa de que os fins, ainda que louváveis,
justificariam os meios, se estes não são aceitos pelo sistema constitucional. Eventuais
alegações sobre a realidade fática não servem de justificativa para a violação
do dever ser estabelecido pela ordem
jurídica constitucional[1],
sob pena de se caminhar para a instauração de regime de exceção.
No Estado Democrático de
Direito, o devido processo legal substancial impõe às atividades legislativa,
administrativa e jurisdicional que o comando constitucional, ao excepcionar
certa determinação, seja respeitado, independentemente de quem o aplica e de
sua percepção subjetiva a respeito da matéria.
É o que ocorre quanto ao
direito fundamental de irredutibilidade de salário, que, segundo regra
constitucional expressa, apenas pode ser ressalvado, justamente em situações
excepcionais, como a atual, por meio de convenção coletiva ou acordo coletivo
de trabalho (art. 7º, inciso VI, da Constituição Federal de 1988)[2]. Não
há outros preceitos jurídicos em colisão na disciplina dessa questão específica,
os quais não se confundem com opiniões pessoais a respeito do que seria melhor
para enfrentar os períodos de crise.
O meio constitucionalmente
legítimo para a redução de salário, ainda que acompanhada de redução de jornada
de trabalho (art. 7º, inciso XIII, da Constituição da República), em qualquer
circunstância, é a negociação coletiva[3],
na qual, em regra, é obrigatória a participação dos sindicatos (art. 8º, inciso
VI, da Constituição Federal de 1988)[4].
Desse modo, ainda que o
fim almejado seja a manutenção de empregos em situações de pandemia e de força
maior, evitando-se dispensas individuais e coletivas de trabalhadores, a redução
salarial deve respeitar o devido procedimento constitucionalmente estabelecido,
que é a negociação coletiva de trabalho, e não o acordo individual[5].
Apesar do exposto, o
Pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu no sentido da validade da previsão da
Medida Provisória 936/2020 que autoriza, em certas hipóteses, para
enfrentamento do estado de calamidade pública e da emergência de saúde pública decorrente
do coronavírus, a redução da jornada de trabalho e do salário ou a suspensão
temporária do contrato de trabalho por meio de acordo individual,
independentemente de negociação coletiva e da anuência dos sindicatos. Por
maioria de votos, não foi referendada a medida cautelar deferida, anteriormente,
em sentido diverso (STF, Pleno, ADI 6.363/DF, Rel. p/ ac. Alexandre de Moraes,
j. 17.04.2020).
Em verdade, não há
legitimidade democrática (art. 1º, parágrafo único, da Constituição da
República) de se modificar, por meio da jurisdição, o comando direto e expresso
da norma constitucional, impondo interpretação que diverge de sua clara
determinação.
Diante do cenário de
solene afronta à Constituição, em várias esferas, tanto legislativa, como doutrinária
e jurisdicional, por meio da edição de medida provisória, produção de textos
doutrinários que a defendem e mesmo do exercício da jurisdição pela Corte
Suprema, que na verdade teria o papel de sua guarda (art. 102 da Constituição
da República), nada mais coerente do que figurar na posição minoritária e
vencida, mas em companhia da própria norma constitucional.
A pandemia passará, mas a
recente violação ao preceito constitucional em destaque certamente ficará
marcada nas páginas de nossa história, como exemplo de jurisdição
constitucional que se opõe à norma fundamental. Caberia ao Congresso Nacional, quando
da deliberação sobre a Medida Provisória 936/2020, restabelecer a ordem
constitucional.
Obras do autor:
[1] Cf.
HESSE, Konrad. A força normativa da
constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 1991. p. 24: “A Constituição jurídica não configura
apenas a expressão de uma dada realidade. Graças ao elemento normativo, ela
ordena e conforma a realidade política e social”.
[2]
Cf. RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de
direito do trabalho. 6. ed. Curitiba: Juruá, 1997. p. 331: “O princípio da
irredutibilidade do salário, atualmente, tem foros constitucionais. A Carta de
1988, em seu art. 7º, inciso VI, adota esse princípio, mas, em sua parte final,
faz uma abertura – que nos parece excessivamente ampla – no sentido de permitir
que, mediante negociação coletiva (acordo ou convenção), possam os interessados
estabelecer critérios de diminuição dos salários em vigor na empresa”.
[3]
Cf. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Salário:
conceito e proteção. São Paulo: LTr, 2008. p. 106: “O princípio da
irredutibilidade salarial tem, como exceção, a negociação coletiva,
procedimento através do qual o sindicato dos trabalhadores, de um lado, e o
patronal ou a empresa, de outro lado, desenvolvem entendimentos tendo em vista
estabelecer valores salariais menores”.
[4]
Cf. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Salário:
conceito e proteção. São Paulo: LTr, 2008. p. 106: “Duas são as razões pelas
quais a ressalva foi permitida. Primeira, a natural existência de situações de força
maior nas quais, diante de imperativos econômicos ou financeiros, empresas são obrigadas
a reduzir o salário para evitar dispensa em massa dos trabalhadores. Segunda, a
garantia de que, dependendo da concordância do sindicato dos trabalhadores, a
redução só se fará nas hipóteses de absoluta necessidade, servindo a exigência
do acordo sindical como mecanismo de controle diante de situações fraudulentas.
O sindicato age como fiscal da conveniência da medida”.
[5] Cf.
MAGANO, Octavio Bueno. Manual de direito
do trabalho: direito individual do trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr, 1992.
v. 2. p. 303: “A regra, hoje, de maior realce, sobre o assunto, é a do art. 7º,
VI, da Constituição, em que se fala da irredutibilidade do salário, salvo o
disposto em convenção ou acordo coletivo. A regra da irredutibilidade implica a
ineficácia de alterações determinadas unilateralmente pelo empregador e também
das pactuadas entre este e o empregado individualmente considerado”.