Redução de salário e respeito à ordem jurídica no Estado Democrático de Direito
GUSTAVO
FILIPE BARBOSA GARCIA
Livre-Docente pela
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito pela
Universidade de Sevilla. Pós-Doutorado em Direito pela Universidade de Sevilla.
Professor Universitário em Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito. Membro
Pesquisador do IBDSCJ. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho,
Titular da Cadeira 27. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Advogado.
Os conflitos são
inerentes à vida em sociedade, na qual se desenvolvem as relações de trabalho. A
sua permanência de forma indefinida, entretanto, revela-se prejudicial ao bem
comum e ao desenvolvimento harmônico das relações interpessoais. Justamente por
isso, cabe ao Direito disciplinar a pacificação dos conflitos sociais,
inclusive trabalhistas, tornando necessária a solução adequada das
controvérsias que surgem[1].
A concepção da ausência
de conflitos, além de utópica perante a sociedade pluralista (art. 1º, inciso V,
da Constituição Federal de 1988), caracterizada pela divergência de ideias e de
interesses, pode remontar a concepções estatizantes e autoritárias, como do
corporativismo, que impõe e submete toda a sociedade e suas atividades ao forte
controle estatal, impedindo, de forma artificial, a eclosão de conflitos que
possam desestabilizar a economia e os superiores interesses nacionais. Nessa
linha de pensamento, a própria greve, como materialização do conflito nas
relações coletivas de trabalho, é considerada delito e recurso antissocial.
Mesmo na gravíssima
situação de pandemia atualmente vivenciada, com o reconhecimento do estado de
calamidade pública, ainda que haja certos consensos entre os atores sociais
envolvidos, como a prioridade dos direitos à vida e à saúde, para a preservação
do bem comum, o conflito e a divergência, inclusive nas relações de trabalho,
permanecem em diversos aspectos da dinâmica social.
Embora possam existir certas
variações, em situações de grave crise, as empresas normalmente buscam a
sobrevivência no mercado e, para isso, contam com redução de custos,
possibilidade de redução salarial, suspensão dos contratos de trabalho, entre
outras medidas, como maior flexibilidade no cumprimento da legislação, a serem
autorizadas de forma célere, pois os prejuízos econômicos decorrentes de
medidas como quarentena são crescentes e nefastos. Por outro lado, os
trabalhadores normalmente têm interesse na preservação de seus empregos, sem
perdas remuneratórias, para que possam garantir o sustento pessoal e familiar, cabendo
ao empregador, por ser o titular dos meios de produção, correr os riscos de sua
atividade, e ao governo, na direção do país, assegurar a estabilidade da
economia, de modo a preservar as empresas e os postos de trabalho.
As previsões normativas que
surgem para amenizar, nas relações de trabalho, os impactos terríveis e ruinosos
da crise econômica advinda da pandemia, por outro lado, devem ser interpretadas
em consonância com o ordenamento constitucional. A aplicação da norma jurídica segundo
o sistema e o seu comando não significa visão estreita, legalismo insensível, ou
suposto positivismo retrógrado, mas sim compromisso com o Estado de Direito,
atualmente compreendido como Estado Democrático de Direito (art. 1º da
Constituição da República), que exige o respeito ao ordenamento jurídico em
vigor, a ser interpretado, segundo os seus fins sociais, à luz da Constituição.
Embora as modalidades
normativas abranjam regras e princípios, quando a norma constitucional
determina algo, de forma direta e cogente, não cabe ao intérprete, por
discordar do seu preceito, valer-se de técnicas como ponderação ou sopesamento,
para conseguir alcançar o resultado almejado, supostamente mais justo, mas
distinto daquele determinado pelo sistema constitucional. A máxima da
proporcionalidade, a rigor, incide quando o direito fundamental, previsto em
norma jurídica com natureza de princípio,
ao ser objeto de disciplina legislativa, sofre restrições, podendo colidir com
outros direitos fundamentais. Em casos assim, cabe analisar se a restrição
estabelecida é adequada, necessária e proporcional em sentido estrito, para ser
considerada constitucional[2].
No ordenamento jurídico
em vigor, a redução de salário, ainda que acompanhada de redução de jornada, é
medida drástica e excepcional, a ser utilizada apenas em situações graves,
inesperadas, ou imprevisíveis, inevitáveis, de força maior, como é o caso justamente da atual pandemia.
Independentemente de opinião
pessoal, ou daquilo que o intérprete entenda, subjetivamente e com boas
intenções, ser o mais adequado, no Estado Democrático de Direito, é imperiosa a
observância da previsão constitucional que dispõe a respeito da questão.
Em matéria de redução salarial,
mesmo que acompanhada de redução de jornada de trabalho (art. 7º, inciso XIII,
da Constituição Federal de 1988), a determinação constitucional é expressa no
sentido da “irredutibilidade do salário, salvo
o disposto em convenção ou acordo coletivo” (art. 7º, inciso VI, da
Constituição da República). A previsão normativa, inserida no sistema
constitucional, pode nem sempre satisfazer todas as opiniões, interesses e
anseios, pode desagradar alguns, mas deve ser observada, sob pena de se
caminhar para a instauração de regime de exceção, rompendo-se com a ordem
jurídica constitucional. A ressalva estabelecida pela Constituição quanto à
irredutibilidade de salário, em si, tem evidente natureza normativa de regra jurídica, não podendo ser ampliada
ou contornada pelo intérprete por meio de argumentos comoventes ou técnicas que
tenham como objetivo alcançar certo resultado pretendido, que se defenda como o
mais justo e razoável, mas que é distinto do comando constitucional[3].
[1] Cf. NASCIMENTO,
Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 26. ed. São Paulo: Saraiva,
2011. p. 1352: “A realidade mostra-nos a sociedade constituída de grupos com interesses
divergentes e a ciência jurídica como a teoria da decisão dos conflitos
sociais, como uma intervenção contínua do direito na convivência humana, vista
como um sistema de conflitos intermitentes, como ressalta Tercio Sampaio Ferraz
Jr.”.
[2] Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 116-117: “Afirmar que a natureza dos princípios implica a máxima da proporcionalidade significa que a proporcionalidade, com suas três máximas parciais da adequação, da necessidade (mandamento do meio menos gravoso) e da proporcionalidade em sentido estrito (mandamento do sopesamento propriamente dito), decorre logicamente da natureza dos princípios, ou seja, que a proporcionalidade é dedutível dessa natureza”.
[2] Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 116-117: “Afirmar que a natureza dos princípios implica a máxima da proporcionalidade significa que a proporcionalidade, com suas três máximas parciais da adequação, da necessidade (mandamento do meio menos gravoso) e da proporcionalidade em sentido estrito (mandamento do sopesamento propriamente dito), decorre logicamente da natureza dos princípios, ou seja, que a proporcionalidade é dedutível dessa natureza”.
[3] Cf. NASCIMENTO,
Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 26. ed. São Paulo: Saraiva,
2011. p. 1209: “Nosso modelo de atendimento aos imperativos de uma crise
econômica passa pelo princípio da irredutibilidade salarial, salvo acordo ou
convenção coletiva, mecanismo que é uma saída para os casos de extrema gravidade,
já usado em nosso país”.