Recontratação de empregado
GUSTAVO FILIPE BARBOSA GARCIA
Livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito pela Universidade de Sevilla. Pós-Doutorado em Direito pela Universidade de Sevilla. Professor Universitário. Membro Pesquisador do IBDSCJ. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, Titular da Cadeira 27. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Advogado.
Discute-se a respeito da
possibilidade de recontratação de empregado que teve o contrato de trabalho
extinto, em especial durante a atual situação de emergência de saúde pública
decorrente do coronavírus.
No plano administrativo,
a Portaria 384, de 19 de junho de 1992, do Ministério do Trabalho, versa sobre
simulação de rescisão contratual e de levantamento do FGTS em fraude à lei.
A inspeção do trabalho
deve dar tratamento prioritário, entre os atributos de rotina, à constatação de
casos simulados de rescisão do contrato de trabalho sem justa causa seguida de
recontratação do mesmo trabalhador ou de sua permanência na empresa sem a
formalização do vínculo, presumindo, em tais casos, conduta fraudulenta do
empregador para fins de aplicação dos §§ 2º e 3º do art. 23 da Lei 8.036/1990,
ou seja, de multa administrativa por trabalhador prejudicado (art. 1º da
Portaria 384/1992).
Considera-se fraudulenta
a rescisão seguida de recontratação ou de permanência do trabalhador em serviço
quando ocorrida dentro dos 90 dias subsequentes à data em que formalmente a
rescisão se operou (art. 2º da Portaria 384/1992). Em caso de aviso prévio
indenizado (art. 487, § 1º, da CLT), embora a questão possa gerar controvérsia,
defende-se que o prazo de 90 dias deve ser contado do término do contrato de
trabalho em si, isto é, sem considerar a projeção do aviso prévio indenizado, a
qual não posterga a cessação do pacto laboral.
Trata-se de previsão
passível de questionamento, notadamente em face do princípio da legalidade
(art. 5º, inciso II, da Constituição da República), por não se tratar de norma
com natureza de lei (art. 37 da Constituição Federal de 1988), além do que a
fraude não se presume, devendo ser demonstrada (art. 9º da CLT)[1].
Constatada a prática da rescisão
fraudulenta, o agente da inspeção do trabalho deve levantar todos os casos de
rescisão ocorridos nos últimos 24 meses para verificar se a hipótese pode ser
penalizada em conformidade com o art. 1º da Portaria 384/1992 (art. 3º da
Portaria 384/1992). Esse levantamento deve envolver também a possibilidade de
ocorrência de fraude ao seguro-desemprego, hipótese em que será
concomitantemente aplicada a sanção prevista no art. 25 da Lei 7.998/1990, ou
seja, multa administrativa.
A matéria deveria ser objeto
de lei (art. 22, inciso I, da Constituição da República) e não de Portaria. De
todo modo, a hipótese seria de presunção relativa e não absoluta.
Mais recentemente, a
Portaria 16.655, de 14 de julho de 2020, da Secretaria Especial de Previdência
e Trabalho do Ministério da Economia, disciplina hipótese de recontratação nos
casos de rescisão sem justa causa, durante o estado de calamidade pública de
que trata o Decreto Legislativo 6, de 20 de março de 2020.
A nova Portaria foi
publicada levando em consideração o disposto no art. 2º da Portaria 384/1992 e
a necessidade de afastar a presunção de fraude na recontratação de empregado em
período inferior a 90 dias subsequentes à data da rescisão contratual, durante
a ocorrência do estado de calamidade pública de que trata o Decreto Legislativo
6/2020.
Sendo assim, durante o
referido estado de calamidade pública, não se presumirá fraudulenta a rescisão
de contrato de trabalho sem justa causa seguida de recontratação dentro dos 90
dias subsequentes à data em que formalmente a rescisão se operou, desde que
mantidos os mesmos termos do contrato rescindido (art. 1º da Portaria
16.655/2020).
A mencionada
recontratação poderá se dar em termos diversos do contrato rescindido quando
houver previsão nesse sentido em instrumento decorrente de negociação coletiva
(art. 1º, parágrafo único, da Portaria 16.655/2020).
A rigor, essa exigência
de previsão em norma decorrente de negociação coletiva incide quando na
recontratação forem pactuadas condições de trabalho inferiores, ou seja, menos
favoráveis do que aquelas previstas no contrato anterior. Evidentemente, com
fundamento na melhoria da condição social dos trabalhadores (art. 7º, caput, da Constituição da República),
admite-se que a recontratação seja feita em condições superiores, isto é, mais
favoráveis ao empregado.
A Portaria 16.655/2020
entra em vigor na data de sua publicação (ocorrida no Diário Oficial da União
de 14.07.2020), retroagindo seus efeitos à data de 20 de março de 2020 (art.
2º).
A Portaria em questão tem
natureza de norma administrativa, com aplicação principalmente no âmbito da
fiscalização trabalhista. Como já exposto, o tema deveria ser objeto de lei,
pois compete privativamente à União legislar sobre Direito do Trabalho (art.
22, inciso I, da Constituição da República), embora a lei complementar possa
autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas a respeito da
matéria (art. 22, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988).
Na jurisprudência,
prevalece o entendimento de que a fraude à continuidade do vínculo de emprego,
decorrente da extinção do contrato de trabalho e recontratação do empregado, em
regra, deve ser demonstrada no caso concreto[2],
por exemplo, com o intuito de burlar, de forma injustificada, o princípio da
irredutibilidade salarial (art. 7º, inciso VI, da Constituição Federal de 1988)[3].
Em se tratando de
contrato de trabalho por tempo determinado, considera-se por prazo
indeterminado todo contrato que suceder, dentro de seis meses, a outro contrato
por prazo determinado, salvo se a expiração deste dependeu da execução de
serviços especializados ou da realização de certos acontecimentos (art. 452 da
CLT)[4].
Na hipótese de contrato
de trabalho por prazo indeterminado, a lei não proíbe a recontratação do
empregado, nem estabelece prazo a ser observado entre o vínculo de emprego
anterior e a nova contratação. Eventuais fraudes, assim, devem ser analisadas
conforme as circunstâncias de cada caso (art. 9º da CLT).
O art. 453 da CLT dispõe
sobre a contagem do tempo de serviço quando o empregado é readmitido, sem impor
lapso temporal entre as contratações. Como explicita a Súmula 138 do TST: “Em
caso de readmissão, conta-se a favor do empregado o período de serviço
anterior, encerrado com a saída espontânea”.
Conclui-se que a Portaria 16.655/2020, mesmo em termos
formais, prossegue na linha equivocada da Portaria 384/1992, ao disciplinar matéria
de Direito do Trabalho, o que deveria ser feito por meio de lei, em respeito ao
princípio da legalidade, inerente ao Estado Democrático de Direito.
Obras do autor:
[1] “A
jurisprudência desta Corte, após o cancelamento da Súmula nº 20, não admite
presunção de fraude em caso de extinção do contrato com readmissão imediata ou
em curto prazo, atribuindo ao empregado o ônus de provar efetivamente a
existência de irregularidades” (TST, 8ª T., AIRR-1002338-61.2016.5.02.0462, Rel.
Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, DEJT 13.09.2019).
[2] “3
- Ante o princípio de que a boa-fé se presume e a má-fé exige prova, foi
cancelada a Súmula nº 20 do TST, segundo a qual deveria ser presumida a fraude
na hipótese de demissão seguida de nova contratação. A jurisprudência desta
Corte Superior evoluiu no sentido de que a fraude deve ser provada e o
pagamento dos créditos trabalhistas na rescisão do primeiro contrato é suficiente
para demonstrar a regularidade da contratação posterior, à parte o curto espaço
de tempo entre uma contratação e outra” (TST, 6ª T., RR-20134-48.2014.5.04.0381,
Rel. Min. Katia Magalhaes Arruda, DEJT 01.12.2017).
[3] “A
egrégia Corte Regional consignou que a dispensa do autor e a recontratação, sem
qualquer plausibilidade, associada à redução salarial, demonstrava a existência
de fraude às leis trabalhistas, perpetrada pela empregadora em prejuízo do
empregado, sendo nula a rescisão do primeiro contrato, reconhecia-se a
unicidade contratual por todo o período por ele laborado” (TST, 5ª T., AIRR-106400-54.2010.5.17.0013,
Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos, DEJT 23.10.2015).
[4]
Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso
de direito do trabalho. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 206.