Renda básica e renda mínima na recente decisão do STF em mandado de injunção

GUSTAVO FILIPE BARBOSA GARCIA

Livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito pela Universidade de Sevilla. Pós-Doutorado em Direito pela Universidade de Sevilla. Professor Universitário. Membro Pesquisador do IBDSCJ. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, Titular da Cadeira 27. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Advogado.


O Estado Democrático de Direito tem como fundamento de maior destaque a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição da República).

A Seguridade Social, ao abranger os direitos relativos à Saúde, à Previdência Social e à Assistência Social (art. 194 da Constituição Federal de 1988), é essencial para se alcançar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, quais sejam: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º da Constituição Federal de 1988).

Nesse contexto, a assistência aos desamparados é direito social, integrando o catálogo dos direitos fundamentais, conforme art. 6º da Constituição Federal de 1988. A Assistência Social, assim, deve ser prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à Seguridade Social (art. 203 da Constituição da República).

Na esfera internacional, toda pessoa tem direito à segurança social e a um nível de vida suficiente para assegurar a si e a sua família a saúde e o bem-estar (arts. 22 e 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948).

Mesmo no âmbito da Organização Internacional do Trabalho, esta deve auxiliar na execução de programas que visem a ampliar as medidas de segurança social, a fim de assegurar tanto uma renda mínima e essencial a todos a quem tal proteção é necessária, como assistência médica completa (art. 3º, f, da Declaração de Filadélfia, de 1944).

Sendo assim, a Assistência Social, como direito da pessoa humana e dever do Estado, é política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada por meio de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas (art. 1º da Lei 8.742/1993).

Na Assistência Social, os projetos de enfrentamento da pobreza compreendem a instituição de investimento econômico-social nos grupos populares, buscando subsidiar, financeira e tecnicamente, iniciativas que lhes garantam meios, capacidade produtiva e de gestão para melhoria das condições gerais de subsistência, elevação do padrão da qualidade de vida, a preservação do meio ambiente e sua organização social (art. 25 da Lei 8.742/1993).

Os benefícios de renda mínima, nesse enfoque, têm como objetivo garantir o mínimo existencial, em respeito à dignidade humana, por meio da redistribuição de renda, ao assegurar valor mínimo às pessoas em situação de pobreza e vulnerabilidade social[1].

No âmbito federal, o Programa Bolsa Família é destinado às ações de transferência de renda com condicionalidades, sendo os benefícios voltados a unidades familiares que se encontrem em situação de pobreza e extrema pobreza (Lei 10.836/2004).

Os benefícios de renda básica, por sua vez, têm caráter universal, pois são voltados a todas as pessoas do País, sem estabelecer restrições quanto ao nível social e econômico dos beneficiários.

A Lei 10.835/2004 institui a renda básica de cidadania, como direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário.

A abrangência da renda básica de cidadania deve ser alcançada em etapas, a critério do Poder Executivo, priorizando-se as camadas mais necessitadas da população (art. 1º, § 1º, da Lei 10.835/2004).

O pagamento do benefício da renda básica de cidadania deve ser de igual valor para todos, e suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País e as possibilidades orçamentárias (art. 1º, § 2º, da Lei 10.835/2004).

O pagamento do benefício da renda básica de cidadania pode ser feito em parcelas iguais e mensais (art. 1º, § 3º, da Lei 10.835/2004).

Nos termos do art. 2º da Lei 10.835/2004, cabe ao Poder Executivo definir o valor do benefício, em estrita observância ao disposto nos arts. 16 e 17 da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).

Como se pode notar, a mencionada previsão legal necessita de regulamentação, para que possa ter efetiva aplicação.

Mais recentemente, ao julgar mandado de injunção sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal concedeu parcialmente a ordem para: i) determinar ao Presidente da República que, nos termos do art. 8º, inciso I, da Lei 13.300/2016, implemente, no exercício fiscal seguinte ao da conclusão do julgamento do mérito (2022), a fixação do valor disposto no art. 2º da Lei 10.835/2004 para o estrato da população brasileira em situação de vulnerabilidade socioeconômica (extrema pobreza e pobreza - renda per capita inferior a R$ 89,00 e R$ 178,00, respectivamente - Decreto 5.209/2004), devendo adotar todas as medidas legais cabíveis, inclusive alterando o PPA (Plano Plurianual), além de previsão na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e na LOA (Lei Orçamentária Anual) de 2022; e ii) realizar apelo aos Poderes Legislativo e Executivo para que adotem as medidas administrativas e/ou legislativas necessárias à atualização dos valores dos benefícios básico e variáveis do Programa Bolsa Família (Lei 10.836/2004), isolada ou conjuntamente, e, ainda, para que aprimorem os programas sociais de transferência de renda atualmente em vigor, mormente a Lei 10.835/2004, unificando-os, se possível (STF, Pleno, MI 7.300/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 27.04.2021).

Esclareça-se que o mandado de injunção deve ser concedido sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania (art. 5º, inciso LXXI, da Constituição Federal de 1988).

Nos termos do art. 8º, inciso I, da Lei 13.300/2016, que disciplina o processo e o julgamento dos mandados de injunção individual e coletivo, uma vez reconhecido o estado de mora legislativa, deve ser deferida a injunção para determinar prazo razoável para que o impetrado promova a edição da norma regulamentadora.

Embora o referido mandado de injunção tivesse como objeto a regulamentação da renda básica de cidadania, prevista na Lei 10.835/2004, por ter sido a ordem concedida em parte, foi determinada a fixação, no exercício fiscal de 2022, do valor disposto no art. 2º da Lei 10.835/2004 para a população brasileira em situação de vulnerabilidade socioeconômica, ou seja, para as pessoas em condição de extrema pobreza e pobreza.

Em razão dessa delimitação das pessoas a serem alcançadas, a decisão do Supremo Tribunal Federal acabou tratando de benefício de renda mínima, que é disciplinado no âmbito federal pelo Programa Bolsa Família (Lei 10.836/2004), e não de benefício de renda básica, o qual deve ser universal, pois independe das condições socioeconômicas das pessoas a serem alcançadas (Lei 10.835/2004).

Tanto é assim que a mencionada decisão realizou apelo aos Poderes Legislativo e Executivo para que sejam adotadas as medidas legislativas e administrativas necessárias para a atualização dos valores dos benefícios do Programa Bolsa Família (Lei 10.836/2004), bem como para que sejam aprimorados os programas sociais de transferência de renda atualmente em vigor, notadamente a Lei 10.835/2004, com a possível unificação deles.

Nesse último aspecto, a decisão do Supremo Tribunal Federal indica a unificação de benefícios com alcances bem distintos, uma vez que a renda mínima é voltada à população em situação de necessidade socioeconômica, ou seja, a pessoas em condições de pobreza e extrema pobreza, enquanto a renda básica é destinada, de forma abrangente, a toda a população.

Cabe, assim, acompanhar os desdobramentos legislativos a respeito dessa relevante matéria, sendo imperioso que o benefício de renda básica não tenha a sua disciplina jurídica confundida com a sistemática voltada à renda mínima.


[1] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito da seguridade social. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 351-355.