Proibição de discriminação e exigência de vacinação: proteção da saúde pública e Portaria 620/2021
GUSTAVO
FILIPE BARBOSA GARCIA
Livre-Docente pela
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito pela
Universidade de Sevilla. Pós-Doutorado em Direito pela Universidade de Sevilla.
Membro Pesquisador do IBDSCJ. Membro da Academia Brasileira de Direito do
Trabalho, Titular da Cadeira 27. Membro do Instituto Brasileiro de Direito
Processual. Professor Universitário. Advogado.
A proibição de discriminação se insere no âmbito dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal de 1988), cabendo à lei punir qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, inciso XLI, da Constituição da República).
A discriminação, em contraposição aos preceitos de isonomia e justiça, impõe tratamento inferior ou prejudicial ao indivíduo ou grupo de pessoas, sem justificativa válida nem fundamento legítimo, o que é vedado nas relações sociais, inclusive de trabalho (art. 7º, incisos XXX, XXXI e XXXII, da Constituição Federal de 1988).
A Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho, de 1958, dispõe sobre discriminação em matéria de emprego e profissão.
Para os fins da Convenção 111 da OIT, o termo discriminação compreende: a) toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão; b) qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de emprego ou profissão, que pode ser especificada pelo Estado-Membro interessado depois de consultadas as organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam, e outros organismos adequados (art. 1º).
A Lei 9.029/1995 proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho, e dá outras providências[1].
Por outro lado, a saúde é direito social (art. 6º da Constituição da República), essencial à proteção do direito à vida (art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988) e à promoção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição da República). A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício (art. 2º da Lei 8.080/1990)[2].
Observados esses aspectos, conforme o art. 1º da Portaria 620/2021 do Ministério do Trabalho e Previdência, é proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao adolescente previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal de 1988, nos termos da Lei 9.029/1995.
Ao empregador é proibido, na contratação ou na manutenção do emprego do trabalhador, exigir quaisquer documentos discriminatórios ou obstativos para a contratação, especialmente comprovante de vacinação, certidão negativa de reclamatória trabalhista, teste, exame, perícia, laudo, atestado ou declaração relativos à esterilização ou a estado de gravidez (art. 1º, § 1º, da Portaria 620/2021).
Considera-se prática discriminatória a obrigatoriedade de certificado de vacinação em processos seletivos de admissão de trabalhadores, assim como a despedida por justa causa de empregado em razão da não apresentação de certificado de vacinação (art. 1º, § 2º, da Portaria 620/2021).
Em consonância com o princípio da legalidade (art. 5º, inciso II, da Constituição da República), inerente ao Estado Democrático de Direito (art. 1º da Constituição Federal de 1988), entende-se que essa matéria deve ser objeto de lei (art. 22, inciso I, da Constituição da República), e não de portaria.
Esclareça-se que constitui ato faltoso do empregado a recusa injustificada à observância das instruções expedidas pelo empregador, por meio de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais (art. 158, parágrafo único, a, da CLT). Nesse contexto, constitui justa causa para extinção do contrato de trabalho o ato de indisciplina do empregado (art. 482, h, da CLT), ou seja, o descumprimento de ordens gerais estabelecidas pelo empregador, no exercício do poder de direção (art. 2º da CLT). Essas determinações podem ter como objetivo a redução dos riscos inerentes ao trabalho, para a preservação da saúde e segurança no meio ambiente laboral (art. 7º, inciso XXII, da Constituição Federal de 1988), em respeito à função social da empresa.
A Lei 13.979/2020 dispõe sobre as medidas que podem ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.
Quanto à vigência do mencionado diploma legal, o Supremo Tribunal Federal assim decidiu: “I - A Lei 13.979/2020, com o propósito de enfrentar de maneira racional e tecnicamente adequada o surto pandêmico, permitiu que as autoridades adotassem, no âmbito das respectivas competências, determinadas medidas profiláticas e terapêuticas. II - Embora a vigência da Lei 13.979/2020, de forma tecnicamente imperfeita, esteja vinculada àquela do Decreto Legislativo 6/2020, que decretou a calamidade pública para fins exclusivamente fiscais, vencendo em 31 de dezembro de 2020, não se pode excluir, neste juízo precário e efêmero, a conjectura segundo a qual a verdadeira intenção dos legisladores tenha sido a de manter as medidas profiláticas e terapêuticas extraordinárias, preconizadas naquele diploma normativo, pelo tempo necessário à superação da fase mais crítica da pandemia, mesmo porque à época de sua edição não lhes era dado antever a surpreendente persistência e letalidade da doença. III - A prudência - amparada nos princípios da prevenção e da precaução, que devem reger as decisões em matéria de saúde pública - aconselha que as medidas excepcionais abrigadas na Lei 13.979/2020 continuem, por enquanto, a integrar o arsenal das autoridades sanitárias para combater a pandemia. IV - Medida cautelar referendada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal para conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 8º da Lei 13.979/2020, com a redação dada pela Lei 14.035/2020, a fim de excluir de seu âmbito de aplicação as medidas extraordinárias previstas nos arts. 3º, 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E, 3º-F, 3º-G, 3º-H e 3º-J, inclusive dos respectivos parágrafos, incisos e alíneas” (STF, Pleno, Ref-MC-ADI 6.625/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 12.04.2021).
Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata a Lei 13.979/2020, as autoridades podem adotar, no âmbito de suas competências, entre outras medidas, a determinação de realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas (art. 3º, inciso III, d, da Lei 13.979/2020, com redação dada pela Lei 14.035/2020).
O Supremo Tribunal Federal conferiu interpretação conforme à Constituição ao art. 3º, inciso III, d, da Lei 13.979/2020, nos termos da seguinte tese de julgamento: “(I) A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, porquanto facultada sempre a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e (i) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, (ii) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, (iii) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas, (iv) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, e (v) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente; e (II) tais medidas, com as limitações acima expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência” (STF, Pleno, ADI 6.586/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 07.04.2021).
Ainda quanto ao tema, o Supremo Tribunal Federal fixou a seguinte tese de repercussão geral: “É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar” (STF, Pleno, ARE 1.267.879/SP, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 08.04.2021).
O empregador deve estabelecer e divulgar orientações ou protocolos com a indicação das medidas necessárias para prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da covid-19 nos ambientes de trabalho, incluindo a respeito da política nacional de vacinação e promoção dos efeitos da vacinação para redução do contágio da covid-19 (art. 2º da Portaria 620/2021). Os empregadores podem estabelecer políticas de incentivo à vacinação de seus trabalhadores (art. 2º, parágrafo único, da Portaria 620/2021).
Com a finalidade de assegurar a preservação das condições sanitárias no ambiente de trabalho, os empregadores podem oferecer aos seus trabalhadores a testagem periódica que comprove a não contaminação pela covid-19, ficando os trabalhadores, nesse caso, obrigados à realização de testagem ou à apresentação de cartão de vacinação (art. 3º da Portaria 620/2021). Tem-se, nessa hipótese específica, obrigação alternativa voltada aos empregados. Ainda assim, entende-se que essa matéria deve ser disciplinada por norma de hierarquia legal. Como portaria não tem natureza de lei, não pode inovar no ordenamento jurídico (art. 87, parágrafo único, inciso II, da Constituição Federal de 1988).
Aplicam-se os demais normativos e orientações dos Ministérios da Saúde e do Trabalho e Previdência quanto à prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da covid-19 nos ambientes de trabalho (art. 3º, parágrafo único, da Portaria 620/2021).
O rompimento da relação de trabalho por ato discriminatório, nos termos do art. 1º da Portaria 620/2021 e da Lei 9.029/1995, além do direito à reparação pelo dano moral, faculta ao empregado optar entre: I - a reintegração com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas, corrigidas monetariamente e acrescidas de juros legais; II - a percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento, corrigida monetariamente e acrescida dos juros legais (art. 4º da Portaria 620/2021). Esse dispositivo reitera o estabelecido no art. 4º da Lei 9.029/1995, mas esta não versa sobre exigência de vacinação, nem sobre apresentação de comprovante, certificado ou cartão de vacinação pelo trabalhador.
A vacinação tem como objetivo a prevenção de doenças, para a preservação da saúde não apenas individual, como coletiva. Trata-se de medida em proteção da saúde pública. Nessa linha, as previsões sobre imunização, no âmbito das ações de vigilância epidemiológica e sanitária, são de ordem pública e de interesse social, devendo prevalecer sobre o interesse particular (art. 8º, parte final, da CLT).
Frise-se que o dever do Estado de garantir a saúde (art. 196 da Constituição da República) não exclui o dever das pessoas, da família, das empresas e da sociedade de garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social (art. 2º, § 2º, e art. 3º, parágrafo único, da Lei 8.080/1990).
Cabe, assim, acompanhar os desdobramentos do possível questionamento judicial da Portaria 620/2021, notadamente no âmbito do Supremo Tribunal Federal.